Com esse nome pomposo, a Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA) é uma doença transmitida por um inseto minúsculo conhecido como mosquito-palha, que carrega o parasita Leishmania* proveniente do sangue de algum animal silvestre, como bicho-preguiça, raposa ou até mesmo rato do mato. Em Aldeia, área endêmica para a Leishmaniose – por conta das matas – é pouco conhecida pelos moradores, mas é mais comum do que se imagina e pode ser mais uma consequência do grande desmatamento que vem ocorrendo na nossa região.
“O homem vai invadindo as áreas de floresta e os animais que lá vivem terminam indo procurar alimento nos jardins e terraços das casas. Com eles vêm os mosquitos e as doenças”, aponta a pesquisadora e vice-coordenadora do serviço de referência em diagnóstico e pesquisa de Leishmaniose da Fiocruz em Pernambuco, Dra. Edileuza Felinto de Brito.
No final de maio passado, o servidor público Fritz Kiemle, 65 anos, morador do km 17 de Aldeia há 5 anos, começou a sentir dores na coxa esquerda, sem nenhum ferimento aparente. Dias depois, uma íngua se formou em sua virilha e ele resolveu procurar um médico. Só depois de vários dias tomando antibiótico e sem ver nenhuma melhora, e quando uma ferida ovalada apareceu abaixo do seu joelho, Fritz recebeu a dica de um segundo médico: poderia estar com Leishmaniose. E a indicação era procurar o posto de saúde mais próximo.
Foi assim que o aldeiense começou uma saga que o tornou quase um especialista na doença. No posto de Saúde de Chã de Cruz, foi super bem atendido e orientado a realizar exames para Leishmaniose Tegumentar Americana. Ele descobriu que apenas o SUS realiza o diagnóstico e tratamento desta doença, considerada “negligenciada” por afetar primordialmente pessoas de baixa renda (em especial moradores e trabalhadores de áreas rurais).
Por ter condições de saúde adequadas, Fritz está tomando medicamento oral três vezes ao dia e aplicando um hidrogel no local da ferida. Ele conta que o tratamento vem dando certo, sem intercorrências. “Me alimento bem antes de tomar o remédio porque sei que é uma droga forte que pode afetar outros orgãos, e com poucos dias de tratamento o ferimento já regrediu bastante. Estou sendo muito bem acompanhado e devo isso ao Sistema Único de Saúde”, diz.
“A LTA é uma doença não contagiosa, que tem cura, mas que deve ser diagnosticada o mais precocemente possível”, diz a dermatologista Angela Rapela, do Hospital Oswaldo Cruz, que há cerca de 20 anos trabalha com pacientes de Leishmaniose. “Se aparecer uma ferida que não sare, de forma ovalada e com as bordas elevadas (como um vulcão), é importante procurar o posto mais próximo para iniciar o tratamento”, explica ela, adiantando que muitas vezes a pessoa subestima a ferida, utiliza alguma pomada e termina mascarando o problema.
O também funcionário público Michelson Belo, 49, que tem casa em Aldeia e passou a pandemia por aqui, foi outro que contraiu a LTA e demorou a entender o que tinha. Ele conta que começou sentindo uma coceira no braço que parecia uma picada de muriçoca, mas que foi crescendo e se transformando numa ferida do tamanho de um botão de camisa, funda no meio e elevada nas bordas, que não doía nem coçava.
“Só depois de uns dois meses, quando vi que a ferida não sarava de jeito nenhum é que procurei um infectologista e um dermatologista. Como não sabia que o SUS realizava os procedimentos, paguei por um exame particular e tive que esperar quase 20 dias para confirmar o diagnóstico de LTA”, conta.
A partir do diagnóstico, Michelson foi orientado a tomar uns comprimidos e a passar uma pomada no local da picada. Ele diz que foram cerca de seis meses até a ferida fechar totalmente. “Eu acredito que demorou muito porque não segui o tratamento correto, que é o oferecido pelo serviço público, mas do qual eu não tinha conhecimento”, explica. Sobre como se contaminou, ele desconfia: “Tudo indica que fui picado na mata perto de casa, em Aldeia, onde gosto muito de caminhar e é um local onde aparecem muitas preguiças, um dos possíveis vetores da doença”, lembra.
Da ferida, restou uma cicatriz (foto), mas nem por isso Michelson está livre de se contaminar novamente. Segundo as especialistas ouvidas pelo Aldeia da Gente, o organismo não se torna imune nem existe vacina contra a doença.
O tratamento preconizado pelo Ministério da Saúde dura, em média, um mês. É feito no posto de saúde, com injeções diárias – ou de forma oral, dependendo de alguns aspectos de saúde do paciente – e não deve ser interrompido. A medicação intravenosa é antiga (do início do século passado, consequência do pouco interesse da indústria farmacêutica, já que os pacientes tipicamente não têm condições de pagar), mas bastante eficiente. O problema é que ainda provoca efeitos colaterais, podendo afetar as funções cardíaca, renal e hepática. Já o remédio oral, que deve ser usado três vezes ao dia, pode provocar náuseas e vômitos. Por isso, a necessidade de um acompanhamento cauteloso pelas equipes de saúde.
De acordo com a Dra. Edileuza, da Fiocruz, a doença dificilmente leva o paciente à morte, mas pode provocar lesões graves nas mucosas, especialmente boca e nariz, chegando até a causar deformidades. Para prevenir, diz ela, “o que podemos fazer, além de desmatar menos e provocar menos queimadas, é nos proteger mantendo o lixo afastado das residências – para evitar a aproximação de animais silvestres – e usando roupas adequadas e repelentes quando formos para perto das matas, especialmente no final do dia, que é o horário em que as fêmeas dos mosquitos procuram sangue para maturar seus ovos”.
Para mais informações sobre a Leishmaniose Tegumentar Americana, acesse a Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde: https://bvsms.saude.gov.br/leishmaniose-2/
* Em Aldeia, a espécie identificada é a Leishmania (Viannia) braziliensis.
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