São muitas as camadas de racismo no ato de acionar o 9º andar das torres gêmeas do Recife, que acabou levando a vida de Miguel Otávio, 5 anos, e deixando Mirtes, sua mãe, sem chão. Mas poucas são as pessoas que conseguem desvendar a influência da raça na estrutura da sociedade pernambucana e acabamos reduzindo o inaceitável para a desculpável negligência. Não. Já basta! Queremos justiça para Miguel!
Num país onde o sistema de Justiça é fundado pela branquitude, racismo no Brasil é expressão proibida nos telejornais. Ou desce atravessado nas gargantas das direções escolares no mês da consciência negra. Em Pernambuco, os resquícios da escravidão dos corpos negros insistem em desenhar a sociedade até hoje. Botar uma criança de 5 anos no elevador, apertar o 9º andar e voltar para a manicure não é falta de paciência, é manifestação do racismo que estrutura o cotidiano da elite econômica e política no Recife. Essa perversidade limita a existência dos corpos políticos negros e periféricos.
É preciso entender que o grito das mulheres e homens negros em marcha é como o “não consigo respirar” de George Floyd. Logo, o clamor por justiça não é pedido de vingança. É reivindicação do reconhecimento de humanidade, algo negado há séculos.
A marcha no Recife hoje foi uma reivindicação de justiça por Miguel, e isso passa por:
1. Realizar julgamento justo. A fiança de R$ 20 mil não paga o ato de retirar a vida de ninguém.
2. Reconhecer que o Estado de Pernambuco foi omisso com as mulheres negras trabalhadoras domésticas durante uma pandemia. Serviço doméstico não é serviço essencial.
3. Oferecer creche pública é essencial para todas as crianças. Esse equipamento é essencial na construção da autonomia financeira das mulheres. O trabalho digno inibe ou retira muitas de nós da situação de violência doméstica.
4. Cuidar de Mirtes Renata Santana de Souza e de sua família pelo trauma causado. Esse cuidado precisa ser através de amparo emocional e material. Ela não terá condições trabalhar durante muito tempo, e muito menos como empregada doméstica.
5. Responsabilizar Sari Corte Real, a sinhá que apertou o botão do 9º andar, também por transmitir Covid-19 para Mirtes e Miguel.
6. Criminalizar o ato de improbidade administrativa do prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker Corte Real (PSB), esposo de Sari Corte Real, que tinha Mirtes como uma das funcionárias da Prefeitura, em alto cargo. No entanto, Mirtes trabalhava na casa dele e em outra cidade.
7. Estampar na imprensa que existe racismo em Pernambuco e ele precisa ser enfrentado com responsabilidade e ética em políticas públicas. Ao invés disso, a imprensa tentou esconder o rosto e o nome de Sari Corte Real.
Construir um caminho de justiça por Miguel Otávio será também cuidar para que nunca mais aconteça. Será uma ação de afeto revolucionário com as mulheres negras periféricas de bairros como Vasco da Gama, onde nasci e tenho família, para que sintam menos medo ao deixarem seus filhos e filhas aos cuidados de outra pessoa quando forem trabalhar na zona rica da cidade. Justiça por Miguel é a ação ética e responsável do Governo de Pernambuco e todos os prefeitos e prefeitas na instalação de creches e serviços seguros para as crianças e suas famílias.
Que sejamos capazes de sair do reducionismo entre dolo ou culpa. Que sejamos capazes de olhar a negligência como um traço de racismo. Que sejamos capazes de dizer “já basta!”. Que sejamos capazes de romper a bolha do racismo e do capitalismo que ditam como vivem os corpos negros! Que sejamos capazes de reconhecer que os corpos das negras sustentam esse país e devem ser eles os que passarão a ocupar a política deste país, começando por Recife, pelo Rio de Janeiro e por todas as cidades onde um corpo de mulher negra em luta (r)exista!
Sylvia Siqueira é jornalista e ativista pelos Direitos Humanos
Fotos: Fran Silva
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